CF 2014: Viver de bicos... Vale a pena?

Publish date 25-03-2014

by ARSENAL DA ESPERANÇA

Quando lemos a parábola dos trabalhadores na vinha (Mateus 20.1-16) logo pensamos a respeito da recompensa que o dono da vinha oferece a todos sem distinções. Quem trabalhou o dia inteiro de baixo do sol, recebe o mesmo salário daquele que acabou sendo contratado ao final do dia. Muitos veem isso como a possibilidade de cada um voltar ao Pai que, por sua infinita bondade, há de nos dar o que é justo, aquilo que foi combinado para conosco, desde o início. Mas neste período da CAMPANHA DA FRATERNIDADE sobre o tráfico humano podemos ler esta parábola sob um outro olhar enfocando o mundo do trabalho. 

Nesta perspectiva, o dono da vinha se mostra como um modelo de empreendedor que trata seus trabalhadores, a força vital de sua empresa, como pessoas. Ele pode ser definido como bom e justo já que realmente é honesto e não tem qualquer receio de convidar a trabalhar em sua vinha aqueles que apresentam mais dificuldades, que são mais fracos e que talvez precisem de mais atenção. Em uma sociedade escrava de uma economia doente onde todos são obrigados a visar somente o lucro, é difícil pensar na humanidade das pessoas, em suas histórias reais, no passado e no futuro de quem é mais frágil. Economia essa que vive de contradições: feita por seres humanos, não sabe lidar com eles e, sobretudo, não sabe lidar com aqueles que estão obrigados, por erros, má sorte ou outras circunstâncias, a mendigar bicos aguardando as peruas nas calçadas da cidade. Mesmo não sendo economistas, não é difícil intuir que os diversos “biqueiros” que vemos por aí são perfeitamente inseridos no sistema.  Ou seja, a própria economia precisa de bicos e de semi-escravos para compensar  falhas do sistema e continuar crescendo.

É claro que o problema do tráfico humano faz parte do sistema da economia global em que numerosos donos dos negócios se utilizam de pessoas sem nenhum respeito à dignidade delas. Homens e mulheres que são vistos como mercadorias, como robôs descartáveis e sem alma. Aquele que escraviza tem sempre um objetivo: suprir uma demanda. Contudo é complicado especificar aquilo que divide o trabalho escravo da falta de compromisso para com o trabalhador privado dos próprios direitos e das garantias para o futuro. Ambos, porém possuem um denominador comum: todos querem gastar menos com seus empregados, limitando as garantias do trabalhador, para que possam lucrar muito mais. Todos estes empresários, principalmente quando o negócio e o lucro são grandes, agem de maneira errada e, muitas vezes, criminosa. 

Em nosso último encontro nos perguntamos: “Viver de bicos: vale a pena?”. Talvez essa pergunta possa parecer inútil, mas para os acolhidos no Arsenal da Esperança e para todos aqueles que ficam na rua o dia inteiro esperando a oportunidade de ganhar algo, esse argumento é muito importante. O “bico”, o trabalho informal, pode ser para alguém sua única possibilidade de trabalho graças a um passado de dividas, ao uso de drogas, a doenças, a irregularidades insanáveis e tudo mais dificulte uma contratação formal. O dono da vinha conhece essas situações e procura dar às pessoas uma oportunidade justa. Todavia em nosso mundo a maioria dessas oportunidades não existem ou chegam sob forma de bicos muitas vezes injustos. Alguns até mesmo chegam a ser verdadeiros trabalhos escravos onde por trás da promessa de um dinheiro fácil se esconde um grande engano em que, no final das contas, o único que ganha é o dono do negócio. Outros mostram-se como trabalhos ocasionais onde o dono precisa de mão de obra imediata. Outros ainda não contratam formalmente a pessoa por opção para obter mais lucro por meio de seu serviço prestado. Renata, uma das técnicas do Serviço Social do Arsenal da Esperança, falou a respeito disso muito claramente em nosso encontro: “Muitas pessoas acolhidas na casa, quando pensam em trabalho, na verdade, pensam apenas sobre o dinheiro para sobreviver, o dinheiro que vão receber ao final do serviço. Mas temos que pensar que, na verdade, o trabalho não ajuda apenas em nossa sobrevivência cotidiana, mas é algo que prepara o nosso futuro. Se eu faço um bico hoje e amanhã de novo e no final de semana também, sem qualquer garantia e depois me machuco, acontece que a minha vida de trabalhador encontrou a palavra fim! E quantas vezes vimos isso acontecer...”. 

Ainda assim, o bico é necessidade e ao mesmo tempo tentação para muitos. Caminhando pelas ruas do nosso bairro é normal ver numerosas peruas prontas para levar braços para o campo de batalha, vítimas e voluntários, mais ou menos conscientes, prontas para montar o palco do último grande show da cidade, para preparar as barracas da festa de rua, para puxar os carros na avenida, para segurar as setas de novos empreendimentos... Dez horas de trabalho por R$ 25,00 e uma paçoca. Terminado o expediente, se o contratador for de palavra, o dinheiro chega e, em vários casos, nem mesmo isso! Para aqueles que não têm um centavo no bolso, como muitos acolhidos da casa, essas possibilidades são uma benção, ou uma ilusão. A nossa postura permanece critica, mas para muitos esse tipo de trabalho é a única porta aberta que existe. Um amigo em seu testemunho durante o encontro relatou o seguinte: “Desde que perdi o uso da mão, sete anos atrás, para mim é impossível sobreviver sem ir atrás dos bicos já que ninguém dá trabalho para um aleijado. Nessa vida eu caí na droga, no álcool, na depressão e a minha vida virou um lixo. A única consolação que encontrei foi aqui no Arsenal.” Nós tentamos propor um caminho alternativo para quem se encontra nesta situação, mas é certo que se toda a sociedade não mudar será difícil a eliminação deste tipo de exploração. 

Podemos agora retomar o trecho de Evangelho que norteou o nosso encontro. O dono da vinha fez a sua parte e não o fez em outra vida, mas neste mundo, entre nós, em nosso tempo, aqui mesmo onde somos chamados a testemunhar que o Reino existe. A nossa sociedade parece mil vezes mais complicada do que aquela descrita por Jesus, mas a Palavra nos dá indicações importantes e uma esperança: podemos construir um mundo mais justo e mais humano onde todos possam participar e receber aquilo que é justo. Contudo é a nossa consciência que tem que mudar. Claro que a consciência da sociedade também, mas principalmente a mentalidade de todos nós que aceitamos com certa superficialidade a lei do mais forte e do mais esperto: quem tem mais capacidades, mais talentos, mais responsabilidades ou maior criatividade tem que ganhar muito mais do que aquilo que é justo? E quem não possui essas capacidades e é mais frágil, mais lento, menos preparado?... É justo que as pessoas não recebam nem mesmo o básico do que precisam para viver? No fundo qualquer um de nós, humanamente falando, está de acordo com aqueles que trabalharam o dia inteiro e reclamaram pela bondade do dono da vinha para com todos os seus trabalhadores. Por isso é difícil aceitar a lógica do dono da vinha, mas temos que aceitar e temos que mudar... Se não mudarmos em nada nossa mentalidade e nossa vida, não adianta afirmar que “é para a liberdade que Cristo nos libertou” (Gálatas 5.1).
A Fraternidade da Esperança  

This website uses cookies. By using our website you consent to all cookies in accordance with our Cookie Policy. Click here for more info

Ok